sábado, 27 de outubro de 2012

Aponta-dor


A lâmina reflete
A madeira podre
E brinca
Polindo a sujeira.

Um corte contínuo
na volta do centro
Modela a espira.
Não vê do lápis
Sua resina.

Apara a madeira
Recorta certeira
Adaga-rapina.
Desfaz o mantido
Decreta sua lei
E não desatina.

Incansável polir
De feridas.
Tua grande ordem:
Pôr o material
À sua forma.

Remove excreção
Lapida e ferve  
A dor escarlate.
Mas Lâmina não vê
O tamanho
Da tua arte.

sábado, 13 de outubro de 2012

Metalinguagem


No poema, a chave.
Ao prazer me entrego.
Um deixar fluir
Do meu tempo oferto.

Um papel em branco
Ou rabiscos na borda
E o convite: Vem!
Vem não ser! Vem ser!
Vem sentir o deleite
Do desejo que acorda!

Então tomo papel e escrevo
Pra vê-lo sorrir de volta.


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Translado


Amanhã faço oito cinco.
Hoje me vi no espelho
E no retrato sobre a estante.
Toquei a rugosa pele, áspera.
Me vi como dantes, víscera.
Chorei ao lembrar dos tempos
de vida. Dos contratempos.

As surras que levei pequeno,
A inquietante efervescência,
A militância, a fábrica de renda,
O casamento, a família, a morte
De um por um. A dor da alegria
Ser efêmera.

Viver muito é se conformar
Com a perda.
Vi morte de quem mais amei,
Levada em súbito, entregue.
Vi Morte me levar também
Vi Morte me levar, de leve.

Batendo na porta todos os dias
Cumprindo seus honorários.
Morte não me abraçou de vez.
Morte se serviu em doses
Diárias. Homeopáticas.
Morte me levou uma parte,
Depois a outra.

E sento-me dela diante.
Agora sem medo, encaro Morte,
Amiga que abraço com alento:
Entrego os fios que me restam.
A ela ofereço os acordes
Da última sinfonia.

Deparo-me sôfrego, observo a mim
Já não me pertencendo.
Vejo a matéria. Vejo-me luz.
Deixo-me ser a Morte.
Deixo-me mais.
Deixo-me.